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O que poderia acontecer se num determinado momento, um simples editor resolvesse colocar um “Não” no lugar de onde deveria estar um “Sim”. É quase com essa estrutura kafkaniana, que na verdade tornou-se saramaguiana, que José Saramago resolve brincar com a possibilidade do “e se”, transformando um fato histórico numa verdadeira busca pelo sentido da palavra escrita. Raimundo Benvindo Silva, revisor de textos, comete um erro proposital ao acrescentar a palavra “não” no livro que está a revisar sobre o apoio que os cruzados deu aos portugueses na queda de Lisboa, fazendo com que o texto passe a ser interpretado como se os cruzados não apoiassem os portugueses, tendo então como consequência o cerco no qual acomete com fatalidades em decorrência da decisão tomada. Com o erro causado pelo revisor e a decisão da empresa de contratar uma supervisora para inspecionar o trabalho de Raimundo, o mesmo passa com o apoio da nova funcionária a escrever um romance que se baseia nas consequências desse fato histórico às avessas. José Saramago, se mostrando mais um vez apto a maestria de seus textos, desenvolve duas histórias pararelas que, juntas, irão se desenvolver nesse livro maravilhoso que envolve um romance como somente Saramago consegue criar e, de uma forma suscinta que será melhor desenvolvido nos seus livros seguintes, a compreensão e descrição de fatos históricos tratados com prestigio e detalhes. Um pouco dotado dos princípios da metalinguagem, em que o livro está tratando da própria linguagem como tema central, Saramago usa de sua personagem para tratar da síntese do autor representado como um “ deus” do mundo que próprio cria o destino daquilo que traça. Isso é bem representado no momento em que Raimundo decide criar uma negativa para o fato histórico do Cerco de Lisboa. Em verdade, na minha opinião, o fato histórico é só um mero pano de fundo para tratar sobre o destino do “se contar a história”, tema essa que brevemente Saramago irá discorrer muito em seus futuros livros: E se o mundo inteiro ficasse cego? E se Jesus tivesse sua própria versão do evangelho? E se eu negasse a participação dos Cruzados ao cerco de Lisboa?. Saramago é fabuloso no seu processo de produção, onde o próprio processo se transforma no enredo daquilo que está a criar. O ato se igualando a arte, o fazer sendo o feito. A literatura se transformando num mar de possibilidades na construção da linguagem. Conhecer os trabalhos do autor é se aventurar no infindável processo de aprimoramento como leitor e pessoa humana. Por Rodolfo Vilar
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Em determinado momento da história da humanidade uma sucessão de fatos se desenrolam, provocando um acontecimento contraditório nunca antes assistido por alma viva, ou até, morta. Uma moça chamada Joana Carda, enquanto entrete-se com o lindo pôr do sol, têm em mãos uma vara de oumeiro que despreocupadamente a utiliza para desenhar um traço no chão. Outro indivíduo, de nome Joaquim Sassa, que também está enriquecido de olhar o pôr do sol, só que na praia, subitamente cria forças para jogar a léguas de distância uma pedra que segundo a física seria praticamente impossível que tal sujeito conseguisse sequer levanta-la do solo. José Anaiço, em outras paragens, um homem comum de sua província, sente-se como vigiado por mil olhos quando na verdade o que está a acontecer é que um bando de estorninhos, numa nuvem negra e dançante, o persegue em todas as direções, chamando a atenção de todos que assistem tal cena. Numa casa abandonada da zona rural perto do Alentejo, Maria Guaraiva, que está simplesmente a desfiar um dos pares de meia para enrolar o novelo de lã, percebe que o fio que está a puxar continua no estado de continuar a desfazer-se, parecendo nunca ter fim, o que é fato verídico. Por fim, mais dois personagens entram em cena, um deles Pedro Orce, o homem que depois de tantos fatos acaba se tornando um sismógrafo, onde qualquer pessoa que lhe toque sentirá o poder da terra a treme-lhe sobre a pele. E por fim, um cão abandonado e místico chamado apenas de Cão, que não tendo por vontade ou destino um lugar para ir, irá juntar-se ao grupo de indivíduos que presenciarão, por seus próprios olhos, a separação da península ibérica do resto do continente europeu. Um fato sem lógica, sem respostas e que levará a consequências drásticas e felizes.
Lançado em 1986, Jangada de Pedra é o sexto romance de José Saramago, que escrito num contexto histórico bastante conflituoso, demonstra o momento em que estava ocorrendo a ideia da Unificação da Europa, onde os países Ibéricos (tratados no romance como Espanha e Portugal) estavam sendo postos de lado nas decisões políticas e econômicas, fazendo com que Saramago criasse essa alusão dos países, num momento específico, separados do restante do continente, a boiar numa deriva como uma grande jangada de pedra, representando então a falta de consideração com tal povo que parecem, num momento, não terem sequer voz, muito menos identidade cultural ou econômica. Durante todo o romance vamos caminhando junto com os personagens, evoluindo numa escala de fatos toda vez que um novo é inserido, demonstrando assim as consequências que a separação provoca nas pessoas, na economia, na ciência e até quiçá, nos amores. Em suma, apesar de tanta crítica a cerca das suas próprias opiniões políticas, Saramago escreve um livro sobre o destino, tratando desse fator como um dado universal que não é causado por coincidência, e se o é, faz com que suas consequências sejam lógicas. O engraçado é que futuramente esse livro seria tratado de certa forma como um agouro na vida do Saramago, já que, depois da publicação de “O evangelho segundo Jesus Cristo”, livro que causou polêmica no seu país levando o autor a se exilar na ilha de Lanzarotti (fato que o próprio negou severamente até sua morte). Muitos dizem que o próprio Saramago criou sua jangada de pedra, vivendo longe das criticas sobre suas obras, sendo pouco perseguido pela mídia e tendo uma vida tranquila ao lado de sua esposa, Pilar. Ler Jangada de Pedra foi estar em conflito com a ideia de um povo perdendo sua identidade, nesse caso específico, os espanhóis e portugueses vendo serem próprios banidos, por forças da natureza, de seu território. De forma mais profunda, a jangada de pedra simboliza o estado de inanição de um povo ou indivíduo que sente-se de mãos amarradas, não conseguindo ele(s) próprio(s) tomarem uma iniciativa na resolução do problema, ficando como no romance, a observarem o navegador dos acontecimentos e seu destino. José Saramago, que nesse ponto de seus romances está totalmente maduro, consegue mesclar suas opiniões e críticas ao que estava acontecendo no seu próprio momento histórico, mostrando o quanto ele era antenado ao assuntos políticos que lhe mereciam atenção. Ler Jangada de Pedra não foi somente uma diversão, onde ficamos esperando ver o que acontecerá com o destino de seis personagens, foi mais que isso. É entender um pouco de posicionamento politico, entender contextos e dar graças por existir escritor tão belo quanto José Saramago. Por Rodolfo Vilar NAVEGUE POR CATEGORIAS!Para facilitar sua procura, busque abaixo na lista o nome do autor que você procura. AUTORES
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April 2021
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