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O livro dos conselhos nos diz Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Um conselho tão simples, tão minimalista que chega a nos causar um certo desconforto. Como é possível enxergar além do que já estamos vendo? A verdade é que o nosso enxergar já é um modo incurável de cegueira. É uma doença que nos contagiou na atual modernidade, uma cegueira que não nos deixa enxergar o hoje, o humano, o físico, o necessário. Uma cegueira que nos deixa além da brancura de nossa verdadeira alma.
Durante uma visita ao Brasil em que José Saramago participou de uma sabatina promovida pela Folha de São Paulo, a imprensa perguntou-lhe sobre o motivo de ter escrito o livro Ensaio sobre a cegueira. Em resposta a essa pergunta, Saramago pensou e respondeu que a ideia para o livro surgiu quando ele estava almoçando no seu cotidiano num dos principais restaurantes em Lisboa, quando lhe surgiu a mente o pensamento: “E se ficássemos todos cegos?”, quando ele percebeu que já tinha a resposta para essa pergunta: “Mas nós já estamos todos cegos de certa maneira”. Foi com esse pensamento um tanto profundo e filosófico que José Saramago escreveu o livro considerado mais perfeito de sua carreira, dando inicio a uma fase diferente em suas temáticas abordadas em meio a literatura e aos próprios livros anteriores, já que segundo o próprio autor, ele “deixou de tratar sobre a superfície da pedra e agora tenta entender o seu interior”, dando referência que a partir de então passará a tratar da profundidade do entendimento humano a cerca do seu papel na sociedade, essa que vem sendo dilacerada por sérios conflitos existenciais e de sua modernidade. Ensaio sobre a cegueira começa quando um sujeito em pleno trânsito de uma capital barulhenta encontra-se cego no caos automobilístico da selva de pedra. Uma “cegueira branca” lhe acomete e o sujeito passa a sentir-se “como num mar de leite” sem enxergar nada que esteja a sua volta. Ao decorrer das páginas, percebemos que o mesmo sintoma passa a ser transmitido a milhares de outros sujeitos por toda a cidade, sendo então percebido que uma determinada doença está a atacar a população mundial. O que resta fazer? Colocar todos os infectados num tipo de quarentena, para que então seja estudado o que poderá se fazer, além é claro, de evitar o contágio com aqueles que não contraíram o mal. Sendo assim, centenas de pessoas são levadas a isolar-se num manicômio, único lugar possível para separar os cegos dos não cegos, e tentar uma possível solução para o problema. Porém, como plot principal da história, acontece de uma não-cega, por vontade própria querer acompanhar o seu marido, que é medico dos olhos e passa a ser quase que uma piada para o grupo. Em meio ao caos, a mulher do médico, que não está cega, passa a perceber o mundo com outros olhos, enxergando aquilo que não queria enxergar e ajudando aos que faltam dos olhos a sobreviver em meio a barbárie que inicia-se nesse novo mundo. O livro é cheio de pontos altos. Um deles é a não existência de nomes para seus personagens, sendo todos eles tratados pelo adjetivo do qual nós os conhecemos em ação. Sendo então a mulher do medico como personagem central e outros que circularão ao seu redor: Seu marido, o primeiro cego, o velho da venda, a rapariga de óculos escuros, o cão das lágrimas e etc.. Uma leve piada que Saramago mostrará ao seus leitores, levando a personagens tão peculiares a se desenvolverem em sua trama de uma maneira única e excêntrica, nos mostrando que os olhos apenas são um acessório para uma ilusão, sendo necessário enxergar além disso. Saramago nunca havia me deixado desconfortável em seus livros, mas nesse ele conseguiu, uma vez que somos levados ao estado primitivo do homem como verdadeiro animal que é. São cenas extremamente ilícitas, grotescas e que causam asco. Verdadeiramente eu deixei o livro de lado em alguns momentos, apenas para conseguir me recompor do estado de choque em que me encontrei. São fortíssimas reflexões que nos abalarão completamente em nosso estado de inocência, nos fazendo regredir ao estado primitivo e nos perguntando “que tipo de ser humano eu sou?”. Marcando uma nova forma de importância a sua literatura, Saramago consegue não somente se renovar em suas temáticas, mas também transformar leitores em indivíduos pensantes e críticos. Por Rodolfo Vilar.
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April 2021
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