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Primeiro foi preciso estar cego para somente assim se enxergar. Depois foi preciso entender essa cegueira para enfim se calcular que a lucidez está no processo de abrir os verdadeiros olhos. Ao abrir os olhos se percebe que o mundo no qual estamos inseridos está de uma maneira tão confusa de suas diretrizes que nada mais faz sentido. Qual resultado então? Usar do estado da "brancura" como forma de protesto.
Em "Ensaio sobre a Lucidez" mais uma vez somos inseridos num pais/cidade alegórico para ilustrar as ideias de um autor. Se José Saramago já tinha um poder político em seus livros, nesse é que ele destila todo o seu poder de discurso para dar voz as diversas ideias que sempre o fizeram da persona que foi. Para alguns isso foi um defeito, já que o livro se torna de certa forma um pouco denso devido ao tema abordado, mas deve-se pensar que se torna impossível não tratar-se de política sem ser denso e didático o suficiente para que não se haja enganos quanto a ideia que deva ser passada a frente. Em suma, já demonstrando o poder do livro, "Ensaio sobre a Lucidez" trata-se não somente de mais um episódio epidêmico de algo anormal que está a se suceder, mas sim sobre uma verdadeira crítica a política contemporânea que nos faz instrumento de suas vontades egoístas. No dia marcado para ocorrer as eleições, a chuva densa está a atrapalhar que os eleitores saiam de casa e exerçam seus direitos ao voto, fazendo com que todas as sessões eleitorais encontrem-se vazias durante boa parte da manhã. Até ai tudo normal, mas não ao ponto em que essa mesma chuva não se torna mais um problema e durante todo o decorrer do dia registra-se que boa parte da população da cidade não compareceu as urnas como devido, fazendo com que os registros deem pela presença de uma anomalia que está a acontecer: os cidadãos estão abandonando o exercício de eleitor. Não para menos, um segundo turno é produzido com o intuito de se corrigir tal abuso à democracia, fazendo com que mais uma vez se registre que não apenas existe a falta do compromisso dos eleitores, mas sim também que boa parte da população (mais de 80%) votou em branco. Com isso a cidade entra em caos, os políticos (sendo esses os partidos de direita, esquerda e do meio) veem isso como uma afronta ao processo democrático, já que necessariamente se precisa escolher alguém como representante do poder governamental. Só resta para o próprio governo encontrar um bode expiatório que explique as causas para que tal fenômeno tenham ocorrido. E é a partir daí que muitos leitores ficaram revoltados com o romance de Saramago. Por se tratar de um voto em branco, onde Saramago irá chamar os personagens que exerceram essa escolha de brancosos, que possivelmente ele ligou essa brancura ao da cegueira em "Ensaio sobre a cegueira" (leia sobre a resenha desse livro aqui). Exatamente, esse livro nada mais é que a continuação do famoso "Ensaio sobre a Cegueira" escrito em 1995, onde gerou uma certa polêmica por se tratar de assuntos tão filosóficos sobre o sentido da vida. Nove anos depois Saramago faz um link desse novo livro ao seu antigo sucesso de vendas, isso no sentido de dizer, assim como no enunciado desse texto, que após a epidemia da cegueira que mostrou aos outros o sentido de enxergar a vida, a brancura dos votos também representa aqui o papel da lucidez em escolher a maneira certa de dizer sua opinião sobre os processos democráticos que na verdade não tem nada de democráticos. Com o passar da história vê-se as consequências da decisão desse voto em branco, sendo que na verdade (pasmem) as reações estão voltadas bem mais ao próprio governo, por ter sido feito de palhaço, que pela população, que continua sua vida pacata sem demonstrar o caos que a máquina do governo estava calculando acontecer. As ruas continuam limpas, os acidentes, assim como a justiça, são assistidos pela própria população que se vira ao máximo como comunidade para fazer as coisas acontecerem, já que como inevitável, o governo os abandonou para encontrar uma solução ao problema. De uma forma bem didática Saramago deixa explicito suas ideias sobre política de uma maneira à tratá-la como um certo problema no mundo atual em que vivemos. Ler esse livro, como eleitor brasileiro na crise em que vivemos (2016-2017), é trazer à tona o forte sentimento de decepção que sofremos com a política de nosso país. Para Saramago, o processo democrático atual não tem nada de democrático, uma vez que alimentamos apenas a máquina do governo para a realização de seus próprios interesses. Além dessa crítica, Saramago mostra o papel da mídia como um certo vilão ao servir de fantoche ao transmitir aquilo que seja favorável ao papel da instituição governamental. O fim, se é que podemos chamar aquilo de fim (e sim, esse foi o único ponto que me deixou triste) é bastante insatisfatório, mas isso apenas é uma fotografia alegórica do que seria a justiça quando se trata do governo como um orgão quase divino exercendo seus poderes de cima para baixo. Por fim, quero apenas deixar claro que o livro para mim não foi um estorvo, mesmo ele não sendo um dos melhores do saramago. Por tratar-se de um livro com temática política, muitos poderão achá-lo um pouco enfadonho por tratar de um assunto um pouco delicado, mas nada que o impeça de ser uma fonte magnifica de entender a verdadeira função que ela exerce sobre os indivíduos de uma sociedade que creem serem donos de suas próprias vontades. Leiam Saramago o quanto antes. Por Rodolfo Vilar
2 Comments
11/6/2017 06:17:18 pm
Gostei muito das suas impressões sobre o livro. Faz uns bons anos que o li (2009, acho) e confesso que já não me lembro dos detalhes - inclusive não lembro como termina. =X É um livro que, definitivamente, quero e preciso reler, já que Saragamago está lá no meu top autores preferidos. Me chamou bastante a atenção o seu comentário sobre as consequências dos votos em branco, realmente a população não parece "afetada", e todo o drama da situação parece voltar-se unicamente ao governo. Talvez essa sensação de "ser o palhaço" que o governo experimenta se assemelhe à sensação de todos os dias que a população é obrigada a aturar, sendo "palhaça" sob autoridades não dignas de sua posição.
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Rodolfo
11/7/2017 04:16:41 pm
Ola Aline! Obrigado pela visita e pelo comentário!
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April 2021
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